A recente decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trouxe um importante precedente sobre a aplicação conjunta da Lei Anticorrupção e LIA. O tribunal definiu que ambas as legislações podem ser usadas simultaneamente para fundamentar uma ação civil pública, desde que não resultem em punições idênticas pelos mesmos fatos.
Essa decisão levanta diversas questões sobre a complementaridade dessas leis, os limites das sanções e a relação com princípios constitucionais, como o non bis in idem. Vamos explorar o caso, analisar a legislação envolvida e entender os impactos práticos desse entendimento.
O que dizem a Lei Anticorrupção e a LIA?
Antes de mergulharmos no julgamento, é essencial entender o que cada lei prevê:
- Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013): Responsabiliza pessoas jurídicas por atos lesivos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. As sanções incluem multas e publicação da decisão condenatória.
- Lei de Improbidade Administrativa — LIA (Lei 8.429/1992): Voltada à punição de agentes públicos e particulares envolvidos em atos que causem enriquecimento ilícito, dano ao erário ou violação dos princípios da administração pública.
Ambas as legislações têm objetivos semelhantes — combater a corrupção e proteger o patrimônio público —, mas seus mecanismos de responsabilização e sanções apresentam diferenças importantes.
O caso Fetranspor e o julgamento do STJ
O caso que originou o julgamento envolve a Fetranspor (Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro), acusada de pagar propina ao ex-governador Luiz Fernando Pezão. O Ministério Público do Rio de Janeiro propôs uma ação civil pública com base nas duas leis, pedindo a indisponibilidade de bens da federação no valor de R$ 34 milhões.
A Fetranspor alegou que a aplicação conjunta da Lei Anticorrupção e LIA violaria o princípio do non bis in idem, previsto no Pacto de San José da Costa Rica, por configurar dupla punição pelos mesmos fatos. O STJ, no entanto, rejeitou o recurso e afirmou que o uso simultâneo das leis é legítimo, desde que as sanções não sejam idênticas.
Princípio do non bis in idem: há violação?
O princípio do non bis in idem impede que uma pessoa ou entidade seja punida mais de uma vez pelo mesmo fato, com base no mesmo fundamento. No entanto, o STJ destacou que:
- O Pacto de San José da Costa Rica não se aplica a pessoas jurídicas.
- O princípio só é violado se houver duplicidade de sanções idênticas pelos mesmos atos.
Ou seja, o simples uso conjunto das leis não configura violação ao princípio. A análise sobre eventual sobreposição de penalidades deve ser feita na sentença, e não na fase inicial do processo.
Como a aplicação conjunta da Lei Anticorrupção e LIA funciona na prática?
O STJ esclareceu que uma mesma conduta pode ser analisada sob duas perspectivas:
Aspecto | Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) | Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) |
---|---|---|
Sujeito responsabilizado | Pessoa jurídica | Agentes públicos e particulares |
Sanções principais | Multa, publicação da decisão, proibição de contratar | Suspensão de direitos políticos, perda de bens, multa |
Natureza da sanção | Administrativa e civil | Civil e política |
Finalidade da punição | Desestimular atos corruptos das empresas | Punir condutas ímprobas e proteger a moralidade pública |
O tribunal destacou que as penalidades só não podem ser cumuladas se forem idênticas e baseadas nos mesmos fundamentos. Por exemplo:
- É permitido aplicar uma multa administrativa à pessoa jurídica com base na Lei Anticorrupção, e uma multa civil ao agente público com base na LIA.
- Seria vedado, porém, aplicar duas multas à pessoa jurídica, pelos mesmos atos, fundamentadas nas duas leis.
O que diz a Lei de Improbidade Administrativa?
O próprio texto da LIA já prevê a compatibilidade com outras legislações. O artigo 3º, § 2º, estabelece que as sanções da lei não se aplicam à pessoa jurídica quando o ato de improbidade também for punido pela Lei Anticorrupção.
Isso demonstra que o legislador já antecipou a possibilidade de coexistência das leis, desde que respeitados os limites para evitar dupla penalização.
Impactos da decisão do STJ
A decisão do STJ tem repercussões amplas para o combate à corrupção no Brasil:
- Fortalecimento das ferramentas anticorrupção: A possibilidade de usar as duas leis amplia o arsenal do Ministério Público e da advocacia pública para proteger o patrimônio público.
- Responsabilização mais ampla: A Lei Anticorrupção atinge pessoas jurídicas, enquanto a LIA foca nos agentes públicos e particulares, permitindo uma abordagem mais completa contra atos ilícitos.
- Segurança jurídica: A exigência de evitar punições duplicadas traz segurança às empresas e entidades, que saberão que não serão penalizadas duas vezes pelos mesmos fatos.
Conclusão: a aplicação conjunta da Lei Anticorrupção e LIA é legítima
O entendimento do STJ é claro: a aplicação conjunta da Lei Anticorrupção e LIA é possível, desde que não resulte em sanções idênticas pelos mesmos atos. Isso garante que o combate à corrupção seja eficiente e abrangente, sem violar direitos fundamentais ou gerar insegurança jurídica.
Essa decisão reforça o compromisso do Judiciário com a proteção da administração pública e a efetividade das sanções anticorrupção, ao mesmo tempo em que respeita os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Se você é gestor público, advogado ou empresário, é fundamental conhecer essas regras para compreender os riscos e as obrigações decorrentes das leis anticorrupção. Afinal, prevenir e corrigir irregularidades é sempre a melhor estratégia para evitar litígios e proteger a reputação da sua organização.