A inércia em impugnar reajuste abusivo contratual por si só não constitui violação ao princípio da boa-fé objetiva. Este foi o entendimento recente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em um caso envolvendo uma fornecedora de gás natural e uma empresa do ramo alimentício. O caso girou em torno de reajustes aplicados de forma unilateral pela fornecedora, que utilizou percentuais muito superiores ao índice oficial de variação da energia elétrica no Paraná.
Mesmo após anos de silêncio da parte contratante, o STJ decidiu que essa inércia não caracteriza, por si só, a supressio – conceito jurídico que se refere à perda de um direito pelo seu não exercício prolongado. Portanto, a inércia em impugnar reajuste abusivo não justifica a validação de um contrato onde houve, inicialmente, abuso de direito por parte de uma das partes.
A Importância do Princípio da Boa-fé Objetiva em Contratos
O princípio da boa-fé objetiva é um dos pilares do Direito Contratual moderno. Ele impõe às partes contratantes um dever de lealdade, transparência e cooperação, assegurando que as cláusulas contratuais sejam cumpridas de maneira justa e equilibrada. Quando uma das partes age de maneira abusiva ou prejudicial à outra, violando a boa-fé, a outra parte não é obrigada a aceitar esse comportamento, mesmo que tenha se mantido inerte durante algum tempo.
No caso em análise, o reajuste abusivo aplicado pela fornecedora de gás natural violou a boa-fé objetiva, já que a cláusula que permitia o reajuste não era clara, e os percentuais aplicados estavam muito acima do razoável.
Inércia em Impugnar Reajuste Abusivo: O Caso Julgado pelo STJ
No processo em questão, uma empresa alimentícia entrou com uma ação revisional de contrato contra a fornecedora de gás natural, alegando que os preços aplicados eram abusivos. A cláusula contratual permitia reajustes, mas não especificava claramente os critérios para tais ajustes, deixando espaço para a fornecedora aplicar percentuais muito superiores ao índice de variação de energia elétrica no Paraná, que deveria ser o parâmetro principal.
Mesmo com a inércia em impugnar reajuste abusivo durante vários anos, o STJ decidiu que essa passividade não poderia ser usada como fundamento para validar um contrato que inicialmente estava viciado pelo abuso de direito.
O Papel da Supressio e a Boa-fé Objetiva
A fornecedora de gás natural argumentou que a inércia da empresa alimentícia em contestar os reajustes durante o período contratual configuraria a supressio, ou seja, a perda do direito de questionar os aumentos devido à inação prolongada. No entanto, o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do caso no STJ, destacou que a supressio só pode ser aplicada quando o comportamento da parte não infringe os princípios da boa-fé objetiva.
Como a fornecedora de gás natural agiu de forma unilateral e abusiva, a supressio não pode ser invocada para validar um contrato com reajustes ilegais. Bellizze deixou claro que a inércia da parte lesada em contestar o contrato não legitima o comportamento abusivo da outra parte, que extrapolou os limites da discricionariedade ao aplicar os reajustes.
TJPR e o Argumento de Comportamento Contraditório
O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), em instância anterior, havia reformado a decisão de primeira instância, afirmando que o comportamento da parte contratante foi contraditório. Para o TJPR, o fato de a empresa alimentícia não ter impugnado os reajustes durante os cinco anos de vigência do contrato indicava conformidade com os termos acordados, o que violaria o princípio da boa-fé contratual.
No entanto, o STJ discordou dessa interpretação. O ministro Bellizze observou que a cláusula de reajuste era aberta e pouco clara, o que impedia que a fornecedora pudesse legitimamente esperar que a contratante não questionaria os aumentos. Além disso, Bellizze ressaltou que, mesmo que houvesse uma cláusula expressa no contrato, ela poderia ser contestada em caso de abusividade.
O Conceito de Supressio e a Inércia em Impugnar Reajuste Abusivo
A inércia em impugnar reajuste abusivo foi o ponto central do recurso especial apresentado ao STJ. A tese de supressio defendida pela fornecedora de gás natural pressupõe que, ao longo do tempo, a parte prejudicada teria renunciado tacitamente ao seu direito de questionar os aumentos abusivos. No entanto, para que a supressio seja aplicada, é necessário que a outra parte tenha agido de acordo com a boa-fé objetiva.
Nesse caso, ficou claro que a fornecedora de gás natural não agiu de boa-fé ao utilizar uma cláusula com conteúdo aberto para impor reajustes que eram claramente prejudiciais à contratante. Assim, a inércia da parte lesada não foi suficiente para validar os aumentos abusivos.
A Boa-fé Objetiva e o Limite do Abuso de Direito
A decisão do STJ reforça a importância da boa-fé objetiva nas relações contratuais. Mesmo que uma parte não questione imediatamente uma prática abusiva, isso não significa que a outra parte pode se beneficiar dessa inércia para validar comportamentos que desbordam dos limites da legalidade. O abuso de direito por parte da fornecedora de gás natural foi determinante para que o STJ reconhecesse a invalidade dos reajustes aplicados.
Conclusão
A inércia em impugnar reajuste abusivo não é, por si só, uma violação ao princípio da boa-fé objetiva, especialmente quando o contrato em questão já está viciado por um abuso de direito. A decisão do STJ no REsp 2.030.882 demonstra que o princípio da boa-fé objetiva é fundamental para garantir a justiça nas relações contratuais, e que a inércia prolongada de uma parte não pode ser utilizada para legitimar práticas contratuais abusivas.
No caso analisado, a fornecedora de gás natural não poderia se beneficiar da passividade da contratante, uma vez que os reajustes aplicados estavam muito acima dos parâmetros esperados e baseados em uma cláusula contratual pouco clara. O STJ, ao restabelecer a sentença de primeira instância, garantiu que o contrato fosse revisado com base em critérios mais justos e proporcionais, preservando o direito da empresa alimentícia de questionar os aumentos, mesmo após anos de inércia.
Essa decisão é um marco importante para o Direito Contratual no Brasil, reafirmando que a boa-fé objetiva deve prevalecer em todas as fases da relação contratual, protegendo as partes contra abusos e excessos, independentemente do tempo que levem para reagir.
Tabela Comparativa: Inércia vs Boa-fé Objetiva
Inércia em Impugnar | Boa-fé Objetiva |
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A parte lesada demora a questionar | As partes devem agir com lealdade |
Não invalida direitos automaticamente | Previne abusos de poder e direito |
Não justifica práticas abusivas | Protege contra comportamento desleal |